Os letristas do nosso cancioneiro popular, como quaisquer outros que manipulem a palavra escrita, estão sujeitos a enganos semânticos. Este artigo não tem pretensões professorais e nem de longe pretende ferir susceptibilidades. É apenas um painel divertido dos tropeços dos nossos poetas da música, cometidos por desinformação ou incultura, alguns perfeitamente releváveis, porém outros capazes de doer nos tímpanos.
Friso que essas escorregadelas não depõem em nada contra os nossos compositores. Muita gente famosa andou soltando disparates por aí. Cito vários: Eça de Queiroz falou em mudez taciturna; Aloísio de Castro em estátua escultural; Ataulfo de Paiva, referindo-se ao avião, chamou-o de viatura alígena; Luiz Delfino comparou as mãos da amada: louras como manteiga; Alberto de Oliveira encontrou águas úmidas; Alberto Faria assim descreveu o lança-perfume: etérea língua de áspide aromal. Feita a ressalva, vamos em frente. A LUA NOVA tem sido uma casca de banana para os poetas populares, que sempre a confundem com a lua cheia e se derramam em louvores. A lua nova é justamente a fase em que a lua, por estar entre o sol e a terra, fica com sua face escura, não sendo vista. Luis Iglésias, na canção Lua Nova, que compôs em 1928 com Francisco Alves, mostra que a geografia não foi o seu forte:
Pela janela transparecia
A lua branca, a lua NOVA
Muito espantada, vendo a alegria
Que transbordava da minha alcova.
Mais adiante reforça o desatino:
Pela janela eu vejo agora
A lua branca, a lua NOVA
Muito espantada, fitar de fora
Toda a tristeza da minha alcova.
O espanto também é nosso, pois alcova não tem janela. Parece que a gafe fez escola. J. Cascata e Manezinho Araujo (ele mesmo, o Rei das Emboladas, já fez suas incursões românticas) compuzeram a bela Mágoas de um trovador, onde mais uma vez a lua nova é badalada:
Linda no céu, no auge do esplendor
Mais uma prova, que a lua NOVA
Nunca esquece um trovador.
Ela ressurge na canção Pastorinhas do Amor:
No pranto auri-fulgente (?) da saudade
Até a lua NOVA nunca mais brilhou!
No carnaval de 1965, Paquito e Romeu Gentil também a convocam:
Eu já vi a lua NOVA
Só me falta ver a cheia.
Luis Vieira, na bonita Guarania da Lua Nova, cria duas românticas:
Plantado na lua NOVA do penar
O tempo vai passando
E eu vejo o desejo da reconciliação
Meu medo é não saber se ela tem no peito
A lua NOVA do perdão.
Apareceu com Edu Lobo e Torquato Neto:
É lua NOVA, é noite derradeira
Vou passar a vida inteira esperando por você…
Lua Nova, de Marcelo, continua com as reivindicações:
Vento leve daqui essa lembrança
Lua NOVA me dá esperança.
Três se juntaram numa mesma composição, Sebastião Gomes, Rubens Reis e Oswaldo Paulo e acabou dando em exagero:
A lua quando era NOVA
Gostava de brincar na areia
Foi minguante, foi crescente
E acabou em lua cheia.
Gonzaga Jr. a requisita em Festa:
SOL vermelho é bonito de se ver
LUA NOVA, no alto, que beleza.
Wilson Moreira e Neizinho cantam seus supostos fluidos:
Mal surgiu a LUA NOVA
Leonor se aluou
Não sei bem se foi a lua
Não sei bem se foi amor.
A valsa Mimi, de Uriel Lourival, tem uma aberração capaz de derreter a cuca dos astrônomos:
Tens na boca embelecida
Pérolas de luz
Rubra ilusão do astral
Perolário a iluminar
UM ECLIPSE DO SOL COM O LUAR.
Adelino e Celso Castro cometem outro despautério:
Vai haver eclipse
Da luz do sol com o luar
Pois o sol cismou que a lua vai namorar.
Tony Damito e Cidinha Rabelo também tentaram enfeitar demais e o resultado foi outro destempero geográfico:
O mundo gira em forma de GLOBO QUADRADO
Os palhaços noturnos gargalham
Na dor do presente-passado.
Nem só a Mimi citada acima tem a boca insólita; outra foi descrita por Xisto Bahia na modinha Que valem as flores:
És uma grega, perfeita e única
Aspásia vejo, de linda plástica
Pedindo um beijo na BOCA ELÁSTICA.
Gomes Filho em Festa Iluminada quer um beijo mais ambicioso:
Quero beijar a ALMA DO SOL
Sentir a vida em plena luz.
No desfile osculatório surge a valsa FlorMulher:
És melodia, harmonia
És a vida que eu vejo
Cada vez mais florida
QUERO BEIJAR TUA VOZ, POR FAVOR!
A música Festa iluminada não tem somente o beijo solar, em sua segunda parte tem versos comoventes:
Olha um bando de sabiás
Nas moitas
Onde o orvalho SUSPIROU
A perola.
Já que falamos no orvalho sentimental lembremos que Noel Rosa foi muito criticado quando criou:
O orvalho vem caindo
Vai molhar o meu chapéu.
É pouco provável que Noel ignorasse que orvalho não cai A opinião dos musicólogos, que endosso, é que usando da licença poética elaborou uma imagem muito feliz. A propósito Aurélio Buarque de Holanda define o orvalho como chuva miúda. Neste verso De Raul Sampaio e Benil Santos há, portanto, um certo exagero:
BANHEI-ME como a chuva do orvalho
E, sem amor, meu mal continuou.
Agora, na composição chamada Coração, Noel, meio desligado nas aulas de fisiologia, deu realmente uma mancada. Era assim:
Coração, grande órgão propulsor
TRANSFORMADOR do sangue
Venoso em arterial.
Grava-o, leva tremenda gozação dos colegas de faculdade e substitui rápido o transformador por distribuidor. O bolero Abandono Cruel deve ter deixado os botânicos estarrecidos:
As flores, tristes, envelhecidas
Pelo abandono da vida
Em perene solidão
Morrem murchado em botão
Despetalando pelo chão.
Como num filme rodado de trás para a frente, as solitárias flores depois de desabrochadas, numa estranha metamorfose começam a encolher, murchar e misteriosamente viram novamente botões. Quando pensamos que se esgotou o fenômeno, nova surpresa nos aguarda: os botões se esborracham no solo, espalhando pétala para todo lado. Às vezes, a ânsia de criar imagens de impacto leva o autor a uma empolgação tal que o acaba enrolando todo. Teve um que cantou assim o olhar da amada:
Teu Olhar DISSONANTE
De meiguice e de ternura
Me deixa embriagado
Com início de loucura!
Lelis de Aragão e Eduardo Souto, pasmem! Descrevem seios gays em Do sorriso da mulher nascem as flores:
Em teu colo há um proema
Feito de beijos ao luar
Um ninho de sincero afeto
Onde dois pombinhos vivem
A arrulhar e se beijar!
O cúmulo da redundância foi de Mário Barreto e Clemente Rodrigues na obra Rio de Janeiro:
O Rio de Janeiro que deslumbra e seduz
Qualquer turista d’outras plagas
D’ALÉM MAR, DO ESTRANGEIRO…
Pleonasmo de Olímpio batista Filho:
Chega-te a mim embora comovida
Para escutar a minha VOZ SONORA
Vejam esta pérola intitulada Descobrimento. Os autores são Ernani Campos e Antonio Augusto:
Quando as caravelas ancoraram
O contentamento era geral
Aves coloridas entoavam
UMA SINFONA EMOCIONAL.
Quem diria, naquele tempo já havia entreguistas. Numa homenagem a Caxias, dois bambas Silas de Oliveira e Mano Décio cantaram assim:
Pacificou de norte a sul os REVOLUCIONISTAS
Seu gesto nobre de civismo
É um modelo magnífico de patriotismo
A sua CASTA PRIMAZIA
Está na maneira pela qual se conduzia.
Portinari, em outro samba, recebeu um rótulo inédito:
Nessa passarela, onde tudo é alegria e sedução
Exaltamos a vida e obra de um artista
O MESTRE DA REFLEXÃO.
Francisco Alves foi louvado por Carlos Alberto e Noel Matias, num samba, como CANCIONEIRO que deixou saudade entre nós. A letra colocada por Otávio de Sousa na valsa Rosa, de Pixinguinha, tem os versos derramados da época, cujo crescendo os faz insensatos:
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo o coração
Sepultas o amor
O riso, a fé, a dor
Em sândalos olentes
CHEIOS DE SABOR.
O homem devorou a árvore , meu Deus! Dupla gulosa é Gilda Rolim e Francisco Elion, que compôs Mãe, amor sublime.
Mãe, ente de bondade
E de tão grande SABOR
Misto de sinceridade
Renúncia e amor.
Um deslize histórico foi o de Chico Alves na primeira gravação de Aquarela do Brasil. A letra lhe foi entregue em manuscrito, cheio de garranchos por Ary Barroso pouco antes de embarcar para o exterior como locutor esportivo. O cantor ficou na pior para decifrar os hieróglifos, mas como não havia jeito foi para a gravadora com o papel na mão e abriu o peito:
Brasil, meu Brasil brasileiro
Meu mulato RIZONEIRO…
Chico leu rizoneiro no lugar de inzoneiro sem raciocinar se a palavra existia ou não. A intenção pode ter sido séria mas digam lá se bezerra Jr. e Tonheca Dantas não se tornaram cômicos:
Lamentando tua ausência eterna
Esta alma devaneia
Como um astro SALUTAR E ATROZ
E a minha voz É UM FUNERAL DE HORROR
Meu amor, de pobre trovador.
No processo criativo vale tudo. Os neologismos surgem com a maior desfaçatez. Desfilemos alguns: Marcos Falcão e Temistocles Costa:
No dia ALELUIAL da tua vinda
Quando à sesta estivermos sós, risonhos…
Gumercindo Saraiva:
Que espelendor! A passarada nos seus ninhos
A cantar
Aquela trova de amor
Que nos SENTIMENTAR.
Iraci Santos e Israel Botelho:
Quando de noite, a lua lentamente
Vai branqueando no INFLECTO manto…
O já citado Lelis de Aragão:
Suspirar soluçar com TRISTOR e amor.
Como eu disse no início, este artigo tem apenas o objetivo de distrair. Os despropósitos que cataloguei devem ser vistos com condescendência, sem ranço de perfeccionismo, para que não corramos o risco de nos transformarmos em patrulheiros puristas, todos uns tremendos chatos. Roberto Carlos, quando surgiu, só faltou ser imolado devido à incompatibilidade que tinha com o pronome LHE. Realmente não havia o que fizesse com que ele acertasse sua colocação. Foi ridicularizado e hoje está aí rindo dos críticos, sucesso e dinheiro apesar dos lhes da vida. O primeiro verso do belo e tecnicamente perfeito Ponteio de Edu Lobo e Capinam, Era um, ERA dois, ERA cem fez surgir alguns narizes torcidos, mas a turma da pichação caiu em si antes de cair no ridículo e resolveu não implicar.
Zé da Zilda quando compôs Saca-Rolha, grande êxito no Carnaval de 1954, quase foi crucificado por um irrelevante descuido de concordância:
As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar
Eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha
E bebo até me afogar
Deixa as águas ROLAR…
Os catadores de migalhas gramaticais gastaram laudas explicando que o certo seria deixa as águas ROLAREM. O mesmo já havia acontecido antes com Aurora de Mário Lago e Roberto Roberti no trecho que dizia:
Se você fosse sincera, ôôô Aurora
Veja só que bom que ERA, etc.
Os pedantes estrilaram querendo impor a forma correta que bom SERIA mas os autores se lixaram. Eu estou com Orestes Barbosa quando diz: língua é convenção. O que o povo aceita é que é certo.