O canto de amor do poeta Noel Rosa

Vila Isabel, 4 de maio de 1937. 21:30 hs. Dedos trêmulos tamborilam na mesinha de cabeceira, talvez um último samba. Repetindo a história, um grande romântico caía vencido com o pulmão baqueado. Um gênio franzino, feio, sofrido, carregando uma deformação facial como um estigma e que se tornaria o maior mito da nossa música popular: Noel Rosa.

Foi um homem de muitos amores e pouco amado. Inteligente, tinha consciência da fragilidade da retribuição aos seus desvelos. Nunca, entretanto, fez concessões ao pieguismo. Jamais foi um choramingas, derramando cascatas lacrimais ou ameaçando morrer pela perjura que o abandonara. Lamentava-se sem pedir condescendência. Percorreu uma trilha sentimental acidentada, com muito mais tropeços que vitórias. Suas musas realmente existiram e foram eternizadas em sua poesia. Com amargor ou ternura cantou-as sempre. Contemos seus cantos de amor.

Aos dezessete anos surgiu Clara em sua vida e um namoro inconseqüente que terminou com a infidelidade de Noel. Cinco anos depois se reencontraram numa festa e a jovem, por estar acompanhada, o ignora. Decepcionado, sai da reunião e, em instantes lança ao papel o Prazer em Conhecê-lo.

Ainda me lembro que ficamos de repente
Frente a frente
Naquele instante mais frios do que gelo
Mas, sorrindo, apertaste minha mão
Dizendo então
Tenho muito prazer em conhcê-lo.

Vizinha de Clara morava Josefina, muito bonita. Noel começou a paquera e o primeiro galanteio musical veio com o retrato que ganhou, Seu riso de criança.

Seu riso de criança
Que me enganou
Está num retratinho
Que eu guardo
E não dou.(1)

Em 1931, já se tornando conhecido, excursiona ao Sul com Francisco Alves e Mário Reis. Na volta traz um samba belíssimo, cheio de saudades. Havia deixado um amor  por lá:

Até amanhã, se Deus quiser
Se não chover
Eu volto pra te ver, ó mulher.

Entretanto, não esquecera Josefina. Dois anos depois, estando os tempos difíceis, a moça se empregou numa fábrica de botões, mas nunca revelou ao admirador. Noel,  mal-informado, convenceu-se de que a jovem trabalhava numa fábrica de tecidos e surgiu o famoso Três Apitos:

Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro.(2)

Uma dançarina, Julinha, foi a paixão seguinte. Pode-se aquilatar o enlevo do compositor refletido nas músicas que lhe dedicou. O lindo Feitio de Oração foi uma delas:

Quem acha
Vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade.

Ela morava na Penha e Noel acabou por transferi-la para o centro da cidade. Era traído com freqüência, mas o samba que brotou de sua mágoa nada tem de dramalhão:

Vai para casa depressa
Vai prevenir teu senhor
Que vim cumprir a promessa
Que fiz, de possuir teu amor.

O arrependimento de tê-la trazido mais para perto das tentações extravasa em dois sambas: Meu barracão e Pra Esquecer.

Faz hoje quase um ano
Que eu não vou visitar
Meu barracão lá na Penha
Que me fez sofrer
Até mesmo chorar.

Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como um nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para cidade
Esquecendo a solidão
E a miséria daquele barracão.

Neurótica, certa vez após uma briga, quebrou o violão do poeta e tentou o suicídio. Motivou outra bela obra:

Ao ver o carro cinzento
Com a cruz do sofrimento
Bem vermelha na porta
Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou morta.

As ambulâncias eram cinzentas naquela época.

Em 1934, surge Ceci, modelo da Escola de Belas Artes, que lhe inspira oito sambas. O antológico Último Desejo:

Nosso amor que eu não esqueço
E que teve seu começo
Numa festa de São João.

Dama do cabaré, descrevendo o primeiro encontro.

Foi num cabaré da Lapa
Que eu conheci você
Fumando cigarro
Entornando champanhe
No seu soirée.(3)

Veio a seguir o amargo Pra que Mentir, onde Noel desabafa seus ciúmes, segundo Ceci infundados, pois era amigo do famoso malandro Meia-Noite e ninguém teria coragem de cortejá-la.

Pra que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom
De saber iludir
Pra que mentir
Se não há necessidade de me trair(4)

A paixão tempestuosa  trouxe brigas cotidianas e com elas novas músicas:

O maior castigo que te dou
É não te bater
Pois sei que gostas de apanhar.

Em 1935, a notícia de que Noel estava doente em Minas, levou Ceci, incógnita, à sua casa buscar notícias, pois já estava casada. Ao voltar, soube da misteriosa visita e criou o Só pode ser você:

E pelas informações que recebi
Já vi
Que essa ilustre visita era você
Porque
Não existe nessa vida
Pessoa mais fingida
Do que você.

Quem ri melhor procura sublimar suas desconfianças:

Pobre de quem já sofreu neste mundo
A dor de um amor profundo
Eu vivo bem sem amar a ninguém
Ser infeliz é sofrer por alguém.(5)

Outro desabafo em Quantos beijos:

Quantos beijos
Quando eu saía
Meu Deus, quanta hipocrisia.

Noel nunca resgatou-lhe apoio financeiro, mas um dia ela pediu uma nota firme e ele se enfezou:

Você me pediu cem mil réis
Pra comprar um soirée e um tamborim
O organdi anda barato pra cachorro
E um gato lá no morro não é tão caro assim.

Ceci supõe que Pastorinhas tenha sido dedicada a ela quando ainda tinha o título de Linda Pequena. Assistiu à feiura da letra e Noel havia dito que a homenagearia com uma marchinha. Eis algumas palavras suas, pouco divulgadas, sobre o Poeta da Vila:

Foi uma pena morrer tão cedo. Mas a verdade é que ele se deixou morrer. Parecia procurar a morte. Tinha amigos, tinha tudo. Só não fazia esforço para viver.

Uma história amena: um samba chamado Estamos Esperando durante muito tempo encucou os pesquisadores, pois seus versos faziam pensar que alguma cabrocha o enfeitiçara, já que o compositor era um dos poucos lá de baixo que tinham salvo-conduto para chegar aos redutos de samba nos morros.

Da tua voz tirei a melodia
E a harmonia eu fiz com teu olhar
Já estava perdendo a paciência
Quando roubei a cadência
Do teu modo de pisar.

Através de Cartola foi desfeito o mistério – não houve musa no caso, a inspiração foi muito pouco romântica: a falta de dinheiro. Fez esse samba num botequim na hora, pedido de Chico Alves, e vendeu-o por cem mil réis. Noel é tão atual que é inconcebível que tenha morrido há mais de 40 anos. Um homem que amou para cantar e cantou para viver. (6).

Sua última composição é uma lição de vida.
Quem é que já sofreu mais do que eu
Quem é que já me viu chorar
Sofrer foi o prazer que Deus me deu
Eu sei sofrer sem reclamar.

Notas

1-Recentemente Josefina foi localizada e entrevistada por uma emissora de TV. Declarou que para ela havia feito apenas o Três Apitos, apesar de um dia estando de pileque ter dito que ela tinha um riso de criança. Aracy de Almeida que gravou a música, indagada a respeito, foi quase dramática: “Em 1933 eu era muito jovem, usava ainda meia curta, e Noel fez na hora esse samba, na Taberna da Glória e me deu. Foi pra mim que ele fez esses samba. Ele fez pra mim. Ele também fez música pra mim!”

2-O maestro e amigo Homero Dornellas era quem passava para a pauta as músicas do compositor. Foi ele quem chamou a atenção de Noel para a semelhança entre os três primeiros compassos do Com Que Roupa com a melodia do hino Nacional e deu uma mexida na hora, diante do estupefato Poeta da Vila. Morador há 50 anos em Vila Isabel, pesquisou e afirma que a fábrica na realidade apitava nove vezes ao dia.
3 Na verdade trata-se de um samba recordação, já que o encontro se deu em 1934 e ele foi composto em 1936.

4-Fico em dúvida se Noel não tinha suas razões. Em um artigo recente recordando a velha Lapa, Mário Lago fala no Cabaré Royal Pigalle, “onde trabalhava a Cecy, que às vezes me acarinhava as noites tendo o pensamento em Noel”.

5-Cecy não se diz musa desse samba, apesar de Almirante afirmar que foi endereçado a ela.

6-Segundo seu primo e biógrafo Jacy Pacheco, Noel teve um amor oculto que inspirou-lhe uma obra-prima o samba Silêncio de um minuto, que tem versos maravilhosos:

Luto preto é vaidade
Neste funeral de amor
O meu luto é a saudade
E saudade não tem cor.

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