O canto do Mané

Um dos médicos que cuidavam de Garrincha disse antes de sua morte que a principal causa de seu espoliamento emocional se chamava Pelé. Ou seja, a indesgastável notoriedade do Rei massacrou o Mané em seu ostracismo. Até na Música Popular isso se evidenciou. Pelé foi muito mais cantado que Garrincha, apesar de este na minha opinião ter se equivalido em genialidade. Numa pequena homenagem coloco em campo composições em que ele foi personagem.
Tudo começou no Carnaval de 1959, com a marcha de Wilson Batista, Jorge Castro e Nóbrega:

Mané Garrincha, Mané Garrncha
Até hoje meu peito se expande
Mané que brilhou lá na Suécia
Mané que nasceu em Pau Grande.

O mesmo Jorge de Castro com Luiz Wanderley fez Feiticeiro da Pelota  com substituto Garrincha, Rei dos Reis, após a Copa do Chile.

Olé, Olé, O feiticeiro da pelota é seu Mané
Garrincha em Viña del Mar
Fez a platéia vibrar
O feiticeiro do mato
Foi o herói do bi-campeonato.

Em 1966 continuava lembrado no Carnaval em Que Coisa Chata de Jackson do Pandeiro, Álvaro Castilho e Anastácio Silva:

Concurso de beleza sem mulata
É festa sem bebida e sem mulher
É samba sem cuíca e sem pandeiro
É seleção sem Garrincha e sem Pelé.

Rutinaldo fez o chá-chá-chá denominado Garrincha chá-chá-cha, aproveitando o modismo:

Eu ganhei uma bola de borracha-chá-chá
Agora todo vair ter rachá-chá-chá
Mamãe deixou, papai comprou
E a pelada começou
Depois da aula eu dou no pé
E posso amanhã ser Pelé ou Mané
Garrincha-chá-chá, Garrincha-chá-chá.

O futebol feminino já vem sendo badalado desde 1959 como mostra a marcha de Paolo Sammartano, Jogo de Vedetes:

Acabou o cartaz de Seu Mané
E do Bellini nem se fala mais
Acabou o cartaz do seu Pelé
E o Didi nem saudade faz
Agora o cartaz é das Conchitas
Que tem pernas bonitas
Pra gente ver!

No samba Maria Espingarda de Jorge Costa e Zé da Glória, ele serve de exemplo para ameaças machistas:

No dia que eu me aborrecer
Eu vou lhe dar um drible de corpo
Que até o rebolado você vai perder
Vou imitar o Canhoteiro, Chinezinho
E o famoso Garrincha
Que quando pega um adversário
Deixa ele desmontado, deixa ele torto.

Da época de glória ainda é O Balanço do Garrincha de Palmeira e Celso dos Santos:

Vocês devem saber porque Garrincha é bicam-peão
Quando ele chuta a bola até parece tiro de canhão
Ele balança pra cá, balança pra lá
Com essas pernas de arrasar
A torcida presta atenção
Com ele fazendo o cara de João.

Jackson do Pandeiro já previa o sucesso sueco de 58 quando gravou:

Vocês, vão ver como é
Didi, Garrincha e Pelé
Dando o seu baile de bola.

Tião Rodrigues em 1974 ainda estava sob os fluidos da vitória mexicana quando compôs Vamos para o tetra-campeão:

O Brasil já foi bi
Com Didi, Amarildo, Vavá e Mané
Hoje é tri
Com Jair, Tostão e Pelé.

Como podem observar até nas letras das músicas Pelé quase sempre participava com ele. Depois de 1966 ele começou a descer. O seu desmoronamento foi registrado de maneira contundente em Balada n° 7 de Alberto Luiz:

Sua ilusão entra em campo no estádio vazio
Uma torcida de sonhos aplaude talvez
O velho atleta recorda as jogadas felizes
Mata a saudade no peito driblando a emoção.
Hoje outros craques repetem suas jogadas
Ainda na rede balança seu último gol
mas pela vida impedido parou
E para sempre o jogo acabou
Suas pernas cansadas correram pro nada
E o time do tempo ganhou.
Cadê você, cadê você… você passou
O que era doce, o que não era acabou
Cadê você, cadê você… você passou
No video-tape do sonho a história gravou.

João Bosco, Paulo Emilio e Aldyr Blanc em Linha de Passe, nonsense delicioso, reafirmam que o sonho acabou:

Já era Tirolesa, o Garrincha, a Galeria
A Mayrink Veiga, o Vai da Valsa e hoje em dia.

Moraes Moreira, ex-integrante do time dos Novos Baianos, se mostra esperançoso de que ressurja a Alegria do Povo:

O rei aqui é Pelé
Na terra do futebol
Olé é bola no pé
Redonda assim como o sol
Seja no Maracanã
Ou num gramado espanhol
Escola aqui é de samba
A bola é arte do povo
Sua alegria Deus manda
Nasce um Garrincha de novo
Quem sabe tem mais de um
Quebrando a casca do ovo
Talá, tá lá, tá lá no filó
Tá na filosofia.

Vinte de janeiro de 1983. Na guia de encaminhamento ao Instituto Médico Legal constava: Nome: Manoel da Silva. Nacionalidade: desconhecida.

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