Em 1928, dois compositores pernambucanos compuseram uma interessante marcha, chamada Mulata, inspirados em Jandira, uma mulata monumento, com pele de veludo. A música fez muito sucesso no carnaval regional de 1928, expandindo-se à Bahia e ao Ceará. Em 1930, foi enviada à RCA para aperciação e acabou sendo engavetada, pois a direção da gravadora não se interessou. (1) Sua letra original é a seguinte:
Nestas terras do Brasil
Aqui
Não precisa mais prantá
Qui dá Feijão, muito dotô e giribita
Muita mulata bunita
O teu cabelo não nega, mulata
Que tu és mulata na cor
Mas com a cor não pega, mulata
Mulata eu quero o teu amor.
Dois anos depois, um compositor já consagrado descobre a mulata sertaneja e resolve pincelá-la com cores cariocas. Lamartine Babo, transformando-a no maior sucesso carnavalesco de todos os tempos. O burilamento que deu fez a marchinha pegar como rastilho de pólvora no carnaval de 32 e acabou mesmo dando em explosão. Os irmão Valença (assim se assinavam os pernambucanos) com razão espernearam, reivindicando a parceria, já que seus nomes tinham sido omitidos. A RCA tentou acalmá-los entregando a Carlos Galhardo dois frevos deles para gravar. Não ficaram satisfeitos e acabaram conseguindo receber uma indenização de 40 contos de réis, uma nota! Nota-se que a bronca foi pela sonegação dos nomes pois houve consenso para que permanecesse a mexidinha de Lamartine. A espetacular introdução que tanto sacode os foliões, não é de Lamartine nem dos Valenças e sim de Pixinguinha, que, com seu gênio, ainda valorizou mais a música.
Esse negócio de retoque em música alheia acaba sempre dando confusão. Outro caso, tendo como protagonista o talentoso Lamartine, já se dera um ano antes. Ary Barroso escrevera uma peça musical chamada É do Balaco-Baco, onde incluía um poema do caricaturista J. Carlos, chamado Na Grota Funda, que musicara. Eis a poesia:
Na grota funda
Na virada da montanha
Só se conta uma façanha
Do mulato da Reimunda.
Lamartine assistiu à revista e vidrou melodia. Foi para casa, modificou a letra e nasceu o belíssimo No Rancho Fundo.
No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade.
A composição que vinha chocha, não fazendo nenhum sucesso no teatro, tornou-se um êxito. Notem que o segundo verso do poema seria também aproveitado em outro samba conhecido da dupla Ary Lamartine:
A saudade vem chegando
E a tristeza me acompanha
Só porque, Só porque
O meu amor morreu
Na virada da montanha.
Disso tudo resultou um homem ferido até o fim de seus dias. J. Carlos morreu acreditando que Ary repudiara sua letra. Seu nome não consta como co-autor em nenhujm dos sambas.(2)
Anos depois, em 1938, o irrequieto Lamartine arranja outro imbróglio. Tendo ido passear na cidade mineira de Boa Esperança, ouve a marchinha de uma autor local, denominada Vaca Amarela. Quando retorna ao Rio modifica a Segunda parte, passa a cantá-la nos seus programas e acaba por entregá-la a Aracy de Almeida, que a grava para o carnaval. O pessoal da cidade, que não perdia suas apresentações, ficou indignado com a omissão do nome do conterrâneo, já que era anunciada como só de Lamertine. O compositor, amigo de Lalá, para acalmar os ânimos escreve-lhe oferecendo a parceria de mão beijada. Eis um trecho de marcha:
A vaca amarela
Pulou a janela
Mexeu, tanto mexeu
Que até quebrou a tal tijela.
Os fatos citados em nada denigrem a imagem de um dos nossos maiores compositores. Afinal, as músicas só estouram depois que as temperou com seu molho.(3)
Quando Armando Marçal, em 1933, lançou o samba Tu partiste, na Escola Recreio de Ramos, não imaginava esta ali o embrião de um dos dez maiores sambas de todos os tempos. O samba que só tinha uma parte e era na segunda pessoa, com a seguinte letra:
Tu partiste
Com saudades eu fiquei
O nosso amor foi uma chama
Que o sopro do passado defez
Agora é cinza
Tudo acabou e nada mais.
Nesse mesmo ano, entrosou-se com Alcebíades Barcelos (Bide) e tornaram-se parceiros. Este sugeriu algumas modificações, inclusive no título, rebatizando-o de Agora é Cinza. Mário reis gravou-o para o carnaval e 1934 e o resto todos sabem.
Nas folias carnavalescas, quando a turma já está dando o prego, as orquestras colocam as coisas sem banho-maria, tocando uma linda e reconfortante marcha-rancho, que velhos e jovens, sem exceção cantam solidários:
A estela-d’alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho explendor
E as Pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.
A música foi composta em 1935 por João de Barro e Noel Rosa. Deram o nome de Linda Pequena à composição. Inexplicavelmente não repercutiu quando lançada para o Carnaval de 36. Um ano depois, a tuberculose levou o genial Filósofo do Samba. A letra, entretanto não era originalmente a que cantamos agora. Braguinha, pesaroso com a morte do amigo, resolveu homenageá-lo no carnaval de 1938. Pegou a Linda Pequena e mudou o título para Pastorinhas, lembrando o Rancho das Pastorinhas, de Vila Isabel, onde tinham nascido, e modificando também os versos que eram assim:
A estrela-d’alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as moreninhas, pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor
Linda pequena
Pequena que tem a cor morena
Tu não tens pena… etc.
Relançada por Silvio Caldas, renasceu como um clássico.
Corria o ano de 1932, quando Luiz Peixoto exibia um espetáculo teatral, estrelado pela atriz portuguesa Maria Sampaio, e necessitava de um samba de efeito para salvar a peça do fracasso. Lembrou-se então de um prolífero compositor, que anos atrás fizera-lhe, sob encomenda, seis fox-trotes numa noite. Ary Barroso aceitou a incumbência e, no dia seguinte, pouco antes do espetáculo, apresentava a música Bahia ao empresário:
Bahia
Cheguei hoje da Bahia
Trouxe uma figa de Guiné
Eu com ela faço fé
Eu com ela faço fé.
Peixoto puxou Ary para um canto: “Olha aqui, rapaz, a melodia é belíssima, mas a letra, me desculpe não é das mais inspiradas”.
E como talento não lhe faltava, Luiz rapidamente escreveu outros versos, fazendo naquele momento uma jóia musical:
Maria
O teu nome principia
Na palma da minha mão…
Luiz Peixoto estava fadado ao sucesso. O exemplo de Maria não foi o primeiro. Anos antes, suas mãos mágicas transformaram uma obscura composição numa obra imortal. Eis a história:
No início de 1928, Henrique Vogeler compôs uma bela melodia, na qual foi colocada uma letra algo rebuscado de Cândido Costa, cujo título era Linda Flor:
Linda Flor! Tu não sabes, talvez
Quanto é puro o amor
Que m’inspiras, não crês.
Ninguém, deu a mínima, mas como a música era realmente bonita, apareceu outro letrista, Freire Jr., que mudou-lhe o título para Meiga Flor. A tentativa não deu em nada. Luiz Peixoto, há muito ligado na melodia, desprezou as letras anteriores e colocou a sua, sendo a consagração:
Ai iôiô
Eu nasci pra sofrê
Fui oiá pra você
Meu zoínho fechô
E quando os zóio eu abri
Quis gritá, quis fugi…
E assim nasceu o primeiro samba-canção brasileiro. Sinhô, o mulato elegante e pernóstico que se autodenominava Rei do Samba, tinha no seu toque o condão para o sucesso. A valsa francesa C’est pas difficille já possuía versão brasileira com o nome de Jenny. Sinhô modificou-lhe o andamento e colocou-lhe nova letra, transformando-a no famoso Pé de Anjo, primeira marcha carnavalesca impressa com esse título:
Ó Pé de Anjo, Ó Pé de Anjo
És rezador
Tens o pé tão grande
Que és capaz de pisar
Nosso Senhor.(4)
Em 1926 lançou, com Bastos Tigre(5), a composição Cassino Maxixe ou Maçã Proibida. Gravada por Chico Alves, em 1927, ninguém tomou conhecimento:
A maçã melhor é a proibida
Que entre Adão e Eva é repartida
Ela morde o tal fruto saboroso
E oferece ao homem que aceita presuroso
Ai que fruta boa
A tal amor
Põe água na boca de uma pessoa
Quem a come lhe encontra tal sabor
Que quanto mais come mais lhe cresce a fome.
No ano seguinte Sinhô deu-lhe umas ajeitadas encaixando versos novos. Com sua moldagem a música foi relançada, alcançando tremendo êxito, incorporando-se à galeria de nossos clássicos populares. Bolou-lhe o inspirado título de Gosto que Enrosco.
Não se deve amar sem ser amado
É melhor morrer crucificado
Deus me livra das mulheres de hoje em dia
Desprezam o homem só por causa da orgia
gosto que enrosco de ouvir dizer
Que a parte mais fraca é a mulher
Mas o homem com toda fortaleza
Desce da nobreza
E faz o que ela quer.
Como se vê, briguinhas à parte, os retoques só fizeram esmerar e consagrar obras destinadas ao esquecimento.
Notas
1-Edigar de Alencar, no seu Carnaval Carioca Através da Música fala em dois anos de engavetamento. Nestor de Holanda (Memórias do Café Nice, pag. 146) diz que a composição mofou cinco anos. Edigar está certo, a obra dos baianos chegou à RCA em 1930. Em 1929 concorreu a um concurso carnavalesco e conseguiu apenas um sexto minguado lugar.
2-Suetônio Valença in Tra-lá-lá diz que Ary autorizou Lamartine a modificar a letra do poema que tinha também o nome de Esse Mulato vai ser meu.
3-A intuição de Lamartine era quase sobrenatural. Cito outro exemplo. João de Barro compôs Uma Andorinha não faz Verão sem pretensões carnavalescas. A Segunda parte originalmente era um pouco requintada.
No Beiral azul do meu telhado
Fizeste um dia o teu ninho
4-Talvez tenha sido a primeira gravação de Francisco Alves em 1920. A música tinha um endereço: pixava os
pés enormes de China. Irmão de Pixinguinha, com quem tinha pinimba. O folclore já registra um verso parecido:
Preto não entre no céu
Nem que seja rezador
Tem o cabelo duro
Vai espetar Nosso Senhor
5-Bastos Tigre foi culturalmente brilhante, homem de múltiplas facestas: teatrólogo, revistógrafo, poeta, jornalista, publicitário (criou slogans famosos: Se é Bayer é bom) lançador do primeiro jornal falado em teatro, antes de surgir o rádio. Compôs com Ary Barroso a marcha carnavalesca teatro, antes de surgir o rádio. Compôs com Ary Barroso a marcha carnavalesca comercial Chopp em Garrafa. comercial Chopp em Garrafa.