Parceria e confraria na Mpb

Qualquer pessoa medianamente informada sobre MPB já ouviu falar da existência de um mercado musical, onde obras são compradas e vendidas, muitas vezes ostensivamente, como Francisco Alves que teve a sofisticação de montar uma central de produções para fornecer-lhe músicas, outras vezes a operação é regida por um código de honra e nunca se conhecerá os verdadeiros autores. Mas este é um assunto que já foi exaustivamente dissecado pelos estudiosos do nosso cancioneiro. O que escrevo aqui abordará um fato pouco divulgado: o dos compositores que receberam ou cederam uma parceria com consenso das partes, sem que o dinheiro tenha prevalecido nos acordos.
As histórias são muitas ainda que pouco divulgadas. Comecemos pela “A Praça”, marcha saudosista de Carlos Imperial que apareceu muito em 1967, onde o parceiro fantasma causou problemas:

A mesma praça, o mesmo banco
As mesmas flores, o mesmo jardim
Tudo é igual, mas estou triste
Porque não tenho você perto de mim.

O autor, extremamente inteligente, Rei da Pilantragem, capaz de vender cavalo a cigano. Vocês devem se lembrar que ele tirou Luiz Gonzaga do ostracismo quando espalhou o boato de que os Beatles iriam gravar “Asa Branca”. Foi um rebuliço e o esquecido Lua voltou às manchetes. Foi ele também que deu o empurrão inicial em Roberto, Erasmo, Simonal e outros. Pegou o “Meu Limão, meu Limoeiro” que andava por aí e registrou-o em seu nome. Pois bem, voltemos à “A Praça”. Imperial bolou um merchandising quase perfeito para promover a música. Eu disse quase. Contratou um crioulinho mineiro para botar a boca no mundo se dizendo parceiro na música e que havia sido omitido.

No princípio tudo bem, a celeuma capitalizou sucesso para a composição, mas com o passar do tempo o “co-autor” se imbuiu de que era realmente o criador da obra e Carlos passou maus pedaços até conseguir se livrar do chato, que o acompanhou por toda parte.

Uma ação entre amigos que também não deu certo envolveu dois festejados compositores pernambucanos: Fernando Lobo (Chuvas de Verão, Nega Maluca, Zum-Zum) e Antônio Maria (Canção da Volta, Valsa de Uma Cidade, Ninguém me ama). Ambos jornalistas andaram se alfinetando através das respectivas colunas, querela desencadeada pelo sucesso de “Ninguém me Ama”. Tinham feito um trato de que cada um cederia a parceria ao outro em determinada música. Fernando aterrissou como gracioso em “Ninguém me Ama” e Antônio entrou na composição “Preconceito” de Fernando. Acontece que “Preconceito” nem deu sinal de vida enquanto “Ninguém me Ama” estourou. Aí Antonio Maria deslumbrado pelo êxito, dedurou que o companheiro não tinha tido participação alguma na feitura da canção. Então foi zarabatana para lá e para cá. Lobo declarou irônico: “Eu coloquei as vírgulas nos versos. Sou portanto o autor das vírgulas, mas isso só fica bem, dito por mim.” Maria contra atacava: “A arrumadeira do hotel está indignada com Fernando Lobo. Todos os dias muda a roupa de cama e à noite Fernando deita a cabeça e suja tudo. “Fernando: “Não estou rompido com Antonio Maria não. Apenas ele é muito gordo, tem muita banha. Afastei-me neste verão, por causa do calor…” Eis o pomo da discórdia:

Ninguém me ama, ninguém me quer
Ninguém me chama de meu amor
A vida passa e eu sem ninguém
E quem me abraça não me quer bem

Vim pela noite tão longa
De fracasso em fracasso
E hoje distante de tudo
Me resta o cansaço
Cansaço da vida, cansaço de mim
Velhice chegando
E eu chegando ao fim.

Lupiscínio Rodrigues foi extremamente pródigo em distribuir parcerias, mas uma se destacou: Felisberto Martins, diretor da gravadora Odeon nos anos 30. Nunca escreveu uma nota sequer para as composições de Lupe, mas seu nome, surge assinando sucessos como “Braza” e “Se acaso você chegasse”. No caso desta última, Lupiscínio foi vivo, pois morando no Rio Grande do Sul seria muito difícil se projetar no Rio sem um empurrãozinho, ainda mais por volta de 1938. Nada melhor que um parceiro, alto funcionário de uma gravadora, mesmo fictício. Só se conheceram dois anos depois do lançamento do disco. De qualquer maneira esse arreglo nos proporcionou a oportunidade de conhecermos um samba notável:

Se acaso você chegasse
No meu chatô e encontrasse
Aquela mulher que você deixou
Será que tinha coragem
De trocar nossa amizade
Por ela que já lhe abandonou
Eu falo por que essa dona
Já mora no meu barraco
À beira de um regato e um bosque em flor
De dia me lava roupa
De noite me beija a boca
E assim nós vamos vivendo de amor.

O famoso samba de breque “Acertei no Milhar” é assinado por uma dupla respeitável: Wilson Batista e Geraldo Pereira:

Etelvina (minha nega), acertei no milhar
Ganhei 500 contos, não vou mais trabalhar
Você dê toda roupa aos pobres
E a mobília podemos quebrar
Etelvina, você vai ter outra lua de mel
Você vai ser madame, vai morar num grande Hotel
Eu vou comprar um nome não sei onde
Vou ser Barão Moreira de Visconde
Um professor de francês, mon amour
Eu vou mudar seu nome pra Madame Pompadour.

Até que enfim agora eu sou feliz
Vou percorrrer a Europa toda até Paris
E os nossos filhos, oh que inferno
Eu vou pô-los num colégio interno
Me telefone pro Mané do armazém
Por que eu não quero ficar devendo nada a ninguém
Eu vou comprar um avião azul
Pra percorrer a América do Sul
Mas de repente, mas de repente
Etelvina me chamou “Está na hora do batente”
Mas de repente, mas de repente
Etelvina me acordou
Foi um sonho minha gente…

Como no fato anterior os autores nem se conheciam. Moreira da Silva foi quem os apresentou e convenceu Wilson, o verdadeiro criador a incorporar Geraldo como parceiro. Moringueira conta: “Em 1940, em São Paulo, o Wilson me mostrou o samba e eu gostei. Marquei para gravar mas falei com ele pra botar o Geraldo Pereira na parceria. Ele estava entrando no meio e era bom de “trabalhar” música. Apresentei o Geraldo ao Wilson na volta ao Rio e ficou tudo azul com bolinha cor-de-rosa. O Wilson era de fazer música mas sair para “buscar o ouro não era com ele”. Como “trabalhador” Geraldo entrou na parceria de “Olha a cara dela”, também de 1940, feita por Moreira da Silva. Um samba morno que nem estivador seria capaz de fazer brilhar.

Olha a cara dela mamãe
Olha a cara dela papai
Essa mulher de babador e de touca
É uma coisa louca, é uma coisa louca
Sai daqui feiona, não te quero ouvir
Esta tua cara
Teu nariz de arara
É que me faz fugir.

Em outra ocasião Geraldo retribuiu. Moreira voltou de Salvador em 1942, passou suas impressões para diversos compositores e ficou esperando o “feedback”. Moreira comenta: “O crioulo era bom de chinfra e, não demorou, me deu o samba pronto, que eu gravei com meu nome e o dele. O samba é dele e as dicas são minhas. Nós somos parceiros. Ou não é?”

Vi tudo que encontrei por lá
Tive convites para bons almoços
Comi efó e também comi vatapá
Acarajé, xinxin apimentado
Boas peixadas com arroz e caruru
E ainda sinto sabor nos lábios
Do jenipapo, da canjica e do angú.

Aliás Moreira não se constrange em reconhecer: “Já dei parceria em vários sambas para o cara que fez meus chapéus. Não pago mas com mais de uma música registrada por ano ele vai fazendo o nome e daqui a pouco se aposenta com uma pensão do INPS”.

Dorival Caymmi teve sua incursão urbana quando fez sambas-canções como “Lembrança do Passado”, “Nesta rua Tão deserta”, Tão só”, “Valerá a pena”, “Sábado em Copacabana”, “Não tem solução”, as duas últimas de relativo sucesso. O que causou surpresa aos que acompanham a carreira do notável baiano, foi que em todas elas constava como parceiro o colunável Carlinhos Guinle, naquela época representante da Rolls-Royce no Brasil. Segundo Lucio rangel as más línguas destilaram a informação que Caymmi entrara com a letra e a música e Carlinhos com o uísque. Uma parceria bem regada como se vê.

Outras vezes o compadrismo nasce à revelia de um dos autores mas como a música emplaca tudo se resolve sem amuos. Foi o que se deu como nelo samba “Louco”, de Henrique de Almeida e Wilson Batista. Henrique havia feito um estribilho que agradara muito ao cantar para os amigos:

Louco, pelas ruas ele andava
E o coitado chorava
Transformou-se até num vagabundo
Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada
Era, seu mundo.

Ninguém sabe como chegou ao conhecimento de Wilson a primeira parte do samba. Ele fez a Segunda e Henrique só ficou sabendo quando Aracy de Almeida o procurou para comunicar que ia gravar o samba já completo e cantou para ele. Henrique confirmou o fato ao autor, completando: “Como Wilson era meu amigo, resolvi deixar pra lá”. Eis o implante de Wilson:

Conselhos eu lhe dei
Pra ele esquecer
Aquele falso amor
Ele se convenceu
Que ela nunca mereceu
Nem reparou
Sua grande dor
Que louco.

Agora uma cessão duvidosa. No carnaval de 1936 Almirante fez sucesso com o samba de Mano Décio da Viola e Ernani Silva, “Vem meu Amor”, cuja inspiração surgiu após Mano Décio ter visto um filme que tinha como tema a Valsa dos Patinadores. A melodia saiu parecida:

Vem meu amor
Vem me consolar
És a primeira mulher
Que não sabe amar.

Rachel e Suetônio Valença contam em “Serra, Serrinha, Serrano, o Império de Samba” que Mano Décio deu parceria a Bide do Estácio e a Braguinha. Quer dizer, pelos excelentes pesquisadores foi uma doação. Só que Mano Décio tem outra versão: “Vendi o samba ao Bide por 50 mil réis e só recebi 30. A música foi gravada em 1936 por Almirante, no nome de João de Barro”. O engraçado é que no disco consta a seguinte autoria: João de Barro, Alcebíades Barcelos (Bide) e Delson Carlos. Do nome dos verdadeiros autores nem sombra.

O Império Serrano em 1948 desfilou com o samba “Antonio Castro Alves”:

Salve Antonio Castro Alves
O grande poeta do Brasil
Que o nosso povo jamais esqueceu
Sua poesia de encantos mil
Deixou histórias lindas
Seu nome na glória vive ainda
Salve este vulto varonil
Amado poeta do nosso Brasil
Foi a Bahia que nos deu
As suas poesias o mundo jamais esqueceu.

Autores: Comprido, Molequinho e Mano Décio. É o que consta nos anais do samba. Mas quem pôs a mão na massa mesmo foi o Comprido. Molequinho justifica; “antes da escolha do enredo eu, o Fuleiro e o Aniceto e os outros mais, fizemos vários sambas para ver qual era o melhor. Mas aí lembramos que havia um samba do Comprido com o tema Castro Alves que levantava o terreiro e resolvemos botar esse samba mesmo. O samba era só do Comprido, mas como eu era o mentor de tudo a maneira mais fácil era ele me dar a parceria. Ele me deu de mão beijada e hoje o samba é gravado com o meu nome, o dele, e de Mano Décio, que teve oportunidade de apanhar carona.” Gostei foi da justificativa: “era mentor de tudo”.

Numa antologia de samba-enredo não pode faltar o “Exaltação a Tiradentes” de mano Décio, Penteado e Estanislau Silva:

Joaquim José da Silva Xavier
Morreu a 21 de abril
Pela independência do Brasil
Foi traído e não traiu jamais
A inconfidência de Minas Gerais
Joaquim José da Silva Xavier
Era o nome de Tiradentes
Foi sacrificado
Pela nossa liberdade
Esse grande herói
Para sempre há de ser lembrado.

O samba teve um paraquedista, o Estanislau Silva, que não colocou nem uma vírgula nem uma nota, apenas entrou para promover, pois tinha penetração nas editoras e gravadoras, já que era conhecido, tendo alcançado grande êxito no carnaval de 1941 com o samba “O Trem Atrasou”. Foi um presentão.

Marques Porto foi um revistógrafo famoso na década de 20-30 e que volta e meia aparece assinando músicas que faziam parte das revistas que produzira. Ary Barroso em início de carreria andou lhe cedendo parcerias. A música mais famosa em que se intrujou é “Chuá-Chuá”, em que aparece como co-autor junto com Ary Pavão e Pedro Sá Pereira. Lembram?

E a fonte a cantar chuá, chuá
E a água a corrê: chuê, chuê
Parece que alguém
Que cheio de mágoas
Deixasse (quem há de dizer?)
A saudade
No meio das águas rolando também

Paulo Pimenta de Mello observa muito bem em seu imprescindível livro “Modinhas & Serestas, Valsas e Canções”: “O revistógrafo Marques Porto abusava da amizade dos colaboradores de suas produções teatrais para incluir-se na autoria das peças que estes compunha. Chegou a figurar como co-autor de “Linda Flor” que todo mundo sabe ser obra exclusiva de Henrique Vogeler e Luis Peixoto”.

“Mamãe eu Quero” de Jararaca e Vicente Paiva é, sem dúvida o nosso mais eterno sucesso carnavalesco desde 1937. Sua origem é controvertida pelo próprio Jararaca, que em 1977 declarava a Tárik de Souza que se inspirou num caco que colocou no final de uma peça chamada “Meu pai é meu filho.” O personagem Zé Bambo dizia confuso: “Não sei mais se o pai do meu filho é meu pai. O que fazer? E veio o improviso: “O jeito é você se abraçar com seu pai e dizer: “Mamãe eu quero mamar!” Já em outra entrevista ao Pasquim diz que se baseou em si mesmo “por que fui um menino mais mamão que apareceu.” Sua esposa aumenta a confusão esclarecendo que Jararaca dizia ter se inspirado no filho do casal Luiz Geminiano. O filho confirma que desde pequeno ouvia a versão. Bem, um pouco de mistério nunca fez mal a ninguém. Continuação do Pasquim. Indagado quem era o autor declarou: “O autor? Não está nos jornais que sou eu? O Vicente eu convidei para ser o meu sócio. Fiz a idéia musical sozinho”. A composição foi criada em dezembro de 1936 e ninguém se interessou em gravá-la. Luiz Barbosa, o grande sambista torceu o nariz. Silvio Caldas também não fez fé. Jararaca resolveu enfrentar a parada mas esbarrou na sua própria gravadora, que não queria esvaziar sua imagem de caipira. O empurrão veio de seu amigo Vicente Paiva, diretor artístico da empresa, que bancou o disco, contrariando a cúpula. Lançado sem maiores pretensões, acabou com mais de vinte gravações no exterior. O empenho de Vicente foi recompensado recebendo a parceria de bandeja.
A empolgação levou o revistógrafo Freire Jr. à cadeia, apesar de seu nome não constar de uma crítica política musicada que fez muito sucesso em 1922. A música espicaçava o candidato mineiro à Presidência, Arthur Bernardes, apelidado de Seu Mé e Rolinha, que a disputava com o fluminense Nilo Peçanha. Freire Jr. criou a letra que ferroava e Careca a melodia. Mas Freire, cauteloso, cedeu os versos a Careca, que escabreado, lançou a música com o pseudônimo de “Canalha das Ruas”, prevendo que poderia dar confusão:

Ai Seu Mé, Ai Seu Mé
Lá no Palácio das Águas, olé
Não hás de por o pé
O Zé Povo quer a goiabada campista
Rolinha desiste, abaixe essa crista
Embora se faça um bernarndo a cacête
Não vais ao Catete, não vais ao Catete
Seu queijo de Minas está bichado, seu Zé
Não sei por que é, não sei por que é
Prefiro bastante apimentado, Tatá
O bom vatapá, o bom vatapá.

O vatapá fazia referência ao vice de Peçanha que era baiano. Resultado: a composição caiu na boca do povo, mas Bernardes ganhou a eleição e ficou à espreita do “Canalha”. Como já falei, Freire não assumiria sua parte na obra, porém a vaidade falou mais alto e diante do êxito da marcha deu uma entrevista a um jornal identificando-se como autor dos versos. E o Rolinha mandou engaiolá-lo. Seu Arthur não era fácil, que o diga Sinhô, que teve que ficar escondido por uns tempos por alfinetá-lo num de seus sambas.

A música sertaneja tem entre os seus clássicos o trágico “Chico Mineiro” de Tonico e Francisco Ribeiro. Tonico desde criança ouvia seu pai contar a lenda do Chico Mineiro. Por volta de 1944, no início de sua carreira, fez uma apresentação na Rádio Tupi e ao sair o porteiro que havia ouvido o programa perguntou-lhe se conhecia a história do Chico Mineiro, o que o espantou. Voltando-lhe à lembrança dos casos contados pelo pai e aproveitando a dica foi para casa e surgiu a canção que até hoje provoca emoção em suas apresentações, principalmente o trecho final:

O Chico foi baleado
Por um homem desconhecido
Larguei de comprar boiada
Mataram o meu companheiro
Acabou-se o som da viola
Acabou-se o Chico Mineiro
Depois daquela tragédia
Fiquei mais aborrecido
Não sabia da nossa amizade
Por que nóis dois era unido
Quando vi seus documento
Cortou meu coração
Vim saber que o Chico Mineiro
Era meu legítimo irmão.

Foi a primeira gravação da dupla Tonico e Tinoco e os lançou para o alto. Pois bem, o Francisco Ribeiro é nada mais nada menos que o porteiro que o fez recordar a lenda e a quem, grato, Tonico deu a parceria.
A falta de memória cultural do brasileiro é lamentável. Enquanto nos outros países o artista veterano é tratado com a maior dignidade aqui é completamente relegado. Nos Estados Unidos Bing Crosby, Tony Benett, Frank Sinatra, Sammy Davis Jr. Ray Charles, Louis Armstrong, Nat King Cole, na França chavalier e Aznavour, no México Pedro Vargas e inúmeros outros podem ser citados como exemplo de prestígio perene. Aqui o ostracismo. Há dois anos fui assistir a um show de Silvio Caldas com 30 pessoas na platéia. Caso revoltante é o do gênio Pixinguinha, que não teve escolha, sendo obrigado a ceder parceria a Benedito Lacerda em vários choros famosos como: “Ingênuo”, “1 x 0”, “Sofres por que Queres”, “Proezas do Solon” que gravaram em dupla. Canhoto depõe a respeito: “A idéia de formar a dupla foi do Benedito Lacerda, por que o Pixinguinha já estava esquecido, ninguém mais falava nele. As músicas eram só do Pixinguinha. E o Benedito combinou tudo com ele: fazia o disco mas entrava nas parcerias. Muitas pessoas meteram o pau no Benedito, mas não tinham razão, ele foi franco. Eles iam tomar a casa do Pixinguinha. Aí o Benedito foi no Vitale, o editor, e arranjou o dinheiro para pagar a hipoteca da casa. “Eu discordo do notável violonista. Sinceramente não acredito no despreendimento do Benedito, mas sim no desespero do Pixinguinha…

Mas existem aqueles não tão “francos”, que participam realmente de uma parceria que não cogitam da inclusão de seu nome. Noel Rosa fez a Segunda parte do samba “Diz qual foi o mal que fiz” junto com Cartola e que Chico Alves gravou. Abriu mão da sua participação: “Deixa pra lá, o samba é do Cartola.” Roberto Martins deu sua contribuição a “Aurora” e “nós queremos uma valsa” e também não quis que seu nome constasse. Orestes Barbosa é outro exemplo. Certa vez Café Nice, reduto de compositores, mostrou a Ary Barroso os seguintes versos:

Quem quebrou meu violão
De estimação
Foi ela
Quem fez do meu coração
Seu barracão
Foi ela

Ary gostou muito e se propôs a musicar e Orestes se comprometeu a terminar a letra. Reencontraram-se no dia seguinte e Ary trouxe a música pronta, tendo feito inclusive o restante da letra. Orestes sem revelar nada, guardou seus versos por mais que Ary insistisse não aceitou entrar na parceria. Foi grande sucesso de Francisco Alves, no carnaval de 1935. Paulo Roberto, além de médico foi produtor de vários programas famosos do rádio brasileiro como: “Obrigado Doutor” e “Nada Além de Dois Minutos”. Um dos grandes êxitos do carnaval de 1934, “Se a Lua contasse”, gravada por Aurora Miranda e João Petra de Barros, consta na história da MPB como sendo de autoria exclusiva de Custódio Mesquita:

Se a lua contasse
Tudo o que vê
De mim e de você
Muito teria que contar
Contaria que nos viu brigando
E viu você chorando
Me pedindo pra voltar.
Somente a lua foi testemunha
Daquele beijo sensacional
Nesse momento foi tal enlevo
Que a própria lua, sentiu-se mal
Só as estrelas que cintilavam
Hoje dão conta do que se viu
Contam que a lua foi desmaiando
Caiu nas ondas, boiou… sumiu…

Só a primeira parte é de Custódio e as duas outras de Paulo Roberto que nunca quis entrar como co-autor argumentando que o mais inspirado da música era o estribilho. Esta revelação só veio a ser feita 35 anos depois! Fez entretanto questão de frisar que Custódio se empenhou de todo jeito para que assinasse também a obra.

“Se você Jurar” de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves em qualquer lista dos dez maiores sambas de todos os tempos está lá, sempre bem votada:

Se você jurar
Que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é, para fingir mulher
A orgia
Assim não vou deixar.

Bem, Francisco Alves entrou por injunções comerciais, já que a dupla era contratada exclusivamente dele. Nilton e Ismael eram muito amigos e como o primeiro morreu moço, o samba ficou mais associado ao nome de Ismael. Um daqueles casos de ofuscamento. Foi gravado em dupla por Mário Reis e Francisco Alves em 1931. Mário não deixou dúvidas de que foi uma cessão amigável quando declara: “Conheci o Nilton muito bem. Sou capaz de dizer quais são as músicas dele ou de Ismael Silva. “Se você jurar”, por exemplo, é mais do Nilton”. Ary Vasconcelos reforça: “Se você jurar, é exclusivamente de Nilton”. Isso é apenas um registro histórico, que não diminui Ismael em nada.

É certo que retribuiu a Nilton. J. Piedade, que a nova geração desconhece foi unânimamente considerado um excelente sambista. Desorganizado, vivia sempre na pior e tornou-se o mais conhecido vendedor de músicas. Algumas, que não passou adiante, chegaram a fazer sucesso como “Chora Doutor”, “Navio Negreiro” “É covardia” “Tudo Acabado”. Pelo menos em duas outras composições suas que repercutiram, ele teve sócios, ou seja, cedeu parceria. “Alo Boy” êxito no carnaval de 1937 com Kid Pepe e a “A Mulher do Padeiro”, com Germano Augusto e Nicola Bruni, que sobressaiu em 1942 gravado por Joel e Gaúcho:

A mulher do padeiro
Trabalhava noite e dia
Ô, ô, ô, ô, ê, ê, ê, ê.
E viajava só no bonde Alegria
Cantava e pulava
E o pagodeiro não sabia
E o padeiro zangado
Deixou de fazer pão
Não atendeu mais a freguesia
De tanto pinote
Fez tanto fricote
Pra ser fiscal lá no bonde da Alegria.

Como Kid Pepe e Germano Augusto eram notórios valentões, J. Piedade deve ter cedido a parceria na marra. Aracy de Almeida conta que Pepe a obrigou, certa vez, com uma faca na barriga a gravar sua batucada “O que tem Iaiá”.

Piedade morreu tuberculoso, na penúria, e seu último samba é contundente:

Azeitona na minha empada ninguém bota
Porque ninguém  é companheiro na derrota.

Projetos de arquitetura e decoração em Brasília. Transforme e valorize seu imóvel com um projeto criativo e surpreendente. Agende uma visita ainda hoje.