Pérolas da Música Popular Brasileira

De uns tempos para cá a MPB foi invadida por exegetas pouco familiarizados com ela, que passaram esmiuçar as letras de músicas. São sociólogos, pedagogos, historiadores e outros advertícios se empenhando em decodificar supostas mensagens embutidas nos versos, em maçantes teses.
Resolvi também analisar versos mas sem essa de mergulhos profundos. Nada sério ou chato. Pincei coisas divertidas que nossos compositores andaram escrevendo. Longe de mim ferir suscetibilidades ao garimpar essas desafinadas semânticas. Elas em nada depõem contra nossos poetas populares. Muita gente famosa andou soltando disparates por aí: Eça de Queiroz citou “mudez taciturna”, Ataulfo de Paiva apelidou o avião de “viatura alígena” e Alberto de Oliveira banhou-se em “águas úmidas”.

Candidatos a juiz num concurso em Pernambuco desatinaram. Escreveram dele e sobre tudo assim separados. Um criou o verbo “oriundar” e outro pespegou um “deverão serem”. Marcus Pereira selecionou entre as respostas de um exame da Escola de Propaganda de São Paulo, estas pérolas:

  • Caravelle (o avião) foi definido como “fantasma célebre que diz-se ter existido na França”.
  • Mark Twain é “notável cronista da Manchete”. Ângelo Rocalli )
  • (Papa João XXIII), foi “um piloto italiano que fez um raid num pequeno avião mundo”.
  • Suriname “é um método de propaganda por percepção indireta”.
  • Nepotismo “um regime soviético”.
  • Monocultura foi definida como “cultura de macacos”.
  • Tzar, nome de uma bebida.

Estão nossos letristas, portanto, em boa companhia. Feita a ressalva, vamos em frente:

Tony Damito e Cidinha Rabello cometem este despautério geométrico e astronômico e pior querendo enfeitar:

O mundo gira em forma de Globo Quadrado
Os palhaços noturnos gargalham
Na dor do presente-passado.

Xisto Bahia na modinha “Quem valem as flores”, mostra uma boca insólita:

És grega perfeita
Aspásia de linda plástica
Pedindo beijo na Boca Elástica.

A mesma boca deve ter inspirado Poeta, Rocha e Jones quando compuseram:

Na hora da despedida
Eu vi dos seus lindos lábios
Um Aceno de adeus.

Raoni que se cuide. Elias Muniz não demora aparece no Fantástico com sua boca que transpira:

Abraço ardente para fazer boa refeição
Bafos Suados e quentes
O resto é com o coração.

Gomes Filho em “Festa Iluminada quer um beijo mas ambicioso:

Quero beijar a alma do sol
Sentir a vida em plena luz.

No desfile osculatório surge a valsa “Flor  Mulher”:

És a vida que eu vejo
Cada vez mais florida
Quero beijar tua voz, por favor.

Por falar em voz Olimpio Filho canta o óbvio:

Chega-te a mim embora comovida
Para escutar minha voz sonora.

Bezerra Jr. e Tonheca Dantas assumiram o besteirol:

Minha alma devaneia
Como um astro salutar e atroz
E a minha voz é um funeral de horror.

Dupla canibalesca é Gilda Rolim e Elion que compôs “Mãe amor sublime”:

Mãe, ente de bondade
E de tão grande sabor.

“Penúria criativa foi a de Ary Barroso na marcha “Pica-pau”:

Olha o pica-pau
Picando o pau lá no jardim
O meu coração é um pica-pau
E não se cansa de bater e sofrer.

Forçou a barra na comparação. Montenegro compara a mulher amada a uma rolinha. Até aí tudo bem, mas rolinha anêmica é de enrubescer:

Vem fazer-me feliz
Vem jurar ser minha
óh pálida rolinha.

Sem dúvida aterrador é o “Olhar de Vagalume” de Teles e Juliana:

Teu olhar de vagalume ilumina essa paixão
Eu me acabo de ciúme, me alvoroça o coração.

Bem, sempre pensei que a luzinha do vagalume ficava em outro lugar… Os grandes vultos receberam elogios peculiares dos compositores. Silas de Oliveira assim cantou Portinari:

Exaltamos a vida e obra de um artista
O mestre da reflexão.

Juquinha e Silveira exageraram na dose transferindo para Santos Dumont o epíteto da Princesa Isabel:

Perto de Belo Horizonte
Nesta terra interessante
Nasce Santos Dumont
Para a nossa Redenção.

A lua nova tem sido uma casca de banana para os poetas populares. É justamente a fase em que por estar entre o sol e a terra, fica com a face escura, não sendo vista. Confundem-na com a lua cheia e de derramam como Gonzaguinha:

Sol vermelho é bonito de se ver lua nova no alto, que beleza.

Ou Luiz Vieira:

Plantado na lua nova do penar
O tempo vai passando.

Aparece com Edu Lobo e Torquato Neto:

É lua nova
É noite derradeira.

Wilson Moreira e Neizinho, para eles existem fluídos nela:

Mal surgiu a lua nova
Leonor se aluou.

Roberto e Erasmo já desafinaram. Em “O Portão” descrevem um hilário cachorro que “sorri latindo” e em “Os seus botões” citam uma capa de chuva muito discreta que pratica o voyeurismo:

Chovia lá fora e a capa pendurada
Assista tudo não dizia nada.

Muitas vezes o compositor quer mostrar cultura e acaba se machucando. O samba “Edital” de Almir Guineto e Lucervi Ernesto é um exemplo. Tem uma profundidade que nem com basticafo se chega lá:

Apesar das peneiras tamparem o sol
Vou cantar os escombros do arrebol
Apesar dos Colombos dos pedigrees
Vou cantar nas carreiras do povo e ouvir bis
Apesar dos sanhaços da lucidez
Vou cantar o que querem cantar vocês.

“Totonho também andou filosofando em “Fogueira de não se apagar”:

Na lapidagem nobre do capricho
Você sublime diamante meu
Com as digitais do coração eu visto
Essa paixão num grande apogeu.

Essas duas só com bula. Liberdade criação é outro departamento e quem sabe, como fez Noel “O orvalho vem caindo”, Jorge com “chove, chuva”, Ary Barroso com “Coqueiro que dá coco”.

O bolero “Mera fantasia” de Adilson e Matos mais uma vez inova no sentido das palavras:

Tudo mera fantasia
De um amor que não prontificou.

Os compositores citados devem se sentir melindrados. Não escrevi o artigo levado por nenhum ranço elitista ou purista de linguagem . Eles são os mais criativos do mundo e a nossa música a mais rica. Portanto, nada de ressentimentos. Agora, se for para se criar algo gosto duvidoso é preferível cultivar o “talento do silêncio” que Carlyle elogiava.

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